O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa nos ensina que um veículo é
"qualquer meio usado para transportar ou conduzir pessoas, animais ou
coisas, de um lugar para outro".
O tão óbvio, contudo, não é compreendido pela sociedade: a
infraestrutura viária, na maioria das cidades brasileiras, chega a ser
repelente a ciclistas. Nestas mesmas cidades, geralmente inexistem
departamentos específicos ou técnicos habilitados com a atribuição de
planejamento de soluções para ciclistas, pedestres e cadeirantes.
No trânsito, os condutores motorizados, disputando entre si pelo cada
vez mais abundante e, ao mesmo tempo, mais escasso asfalto, são
indiferentes ou mesmo hostis aos ciclistas. São raras as empresas
privadas que oferecem bicicletários para seus clientes e funcionários,
e, para consagrar essa realidade, os meios de comunicação, quando tratam
de mobilidade urbana, falam sempre sobre carros e seus condutores.
Mesmo uma rápida inspeção sobre o cenário da mobilidade urbana nos
faz constatar: o poder público não está a serviço dos cidadãos, mas da
indústria automobilística, das petrolíferas, das empreiteiras de
construção civil e do estilo de vida a elas associado, com ênfase no
consumo, acumulação, competição, ostentação. E os cidadãos, de qualquer
modo, não se mostram preocupados com isto, absortos que estão pelo
imaginário social, historicamente construído, de que já cumprem com suas
obrigações de votar e de pagar impostos e de que, portanto, seus
direitos e desejos individuais devem ser atendidos com túneis e vias
expressas.
Por isso a bicicleta não é um veículo pare transportar apenas pessoas
e suas cargas, mas também, no sentido figurado, para mudar o imaginário
social, as práticas administrativas, os paradigmas civilizacionais e
também, indispensável, o bom senso das
pessoas: a bicicleta nos conduz a compreender que, se quisermos um
mundo durável e igualitário, critérios de bem-estar coletivo e de
sustentabilidade ecológica devem fazer parte dos processos de tomada de
decisão, seja por parte dos indivíduos, seja por parte das instituições
públicas e privadas.
A bicicleta é um veículo muitíssimo eficiente em curtas e médias
distâncias (até 6 ou 8 km), mas essa qualidade não pode ser plenamente
(em muitos casos nem mesmo parcialmente) usufruída pelas pessoas
enquanto não houverem políticas públicas adequadas para ofertar
crescentemente infraestrutura segura para seu deslocamento e
estacionamento, para educar sistematicamente a sociedade sobre as
vantagens da bicicleta e sobre os direitos legais dos ciclistas e para
fiscalizar constantemente o cumprimento da legislação de trânsito, bem
como enquanto os indivíduos não renunciarem aos privilégios não
universalizáveis de usar um carro para tudo.
Mas os ciclistas não podem ficar esperando que os administradores
públicos resolvam, de repente, iniciar o processo de mudança. Porque
quem usa a bicicleta para o esporte, para o lazer, para a aventura, para
ir ao trabalho, à escola, ao mercado e para executar outros afazeres
cotidianos não verá sua situação melhorar automaticamente após as
eleições. A democratização da mobilidade urbana requer nada menos que o
exercício democrático: a população refletindo, debatendo e deliberando
coletivamente sobre as políticas públicas que, sendo executadas,
tornarão a cidade mais ou menos acessível a todos os cidadãos.
Conferência da Cidade, Plano Diretor Participativo, Audiências
Públicas, Ação Civil Pública, requisições formais aos poderes executivo e
legislativo e a Conselhos de Direitos são algumas ferramentas
disponíveis de relação direta com o Estado. Passeios ciclísticos,
campanhas educativas, solicitação de melhorias às empresas privadas e
cartas para a imprensa também estão ao alcance de todos os indivíduos,
os quais alcançarão resultados mais eficazes e duráveis tornando-se
coletivos organizados ou unindo-se aos já existentes, como Associações
de Moradores, ONGs ou mesmo grupos informais.
Por toda parte, por sua própria propulsão, apesar das dificuldades,
milhões de pessoas contam com a autonomia de deslocamento e com a
economia de renda possibilitada pela bicicleta e, adicionalmente,
contribuem para a qualidade de vida urbana. E será somente pelos
próprios meios que eles conquistarão paulatinamente políticas públicas
adequadas para possibilitar que mais e mais pessoas possam se beneficiar
do veículo a pedal: ciclistas são veículos para chegarmos a um futuro
que vales pena.
André Geraldo Soares é Coordenador de Comunicação da ViaCiclo
Fonte:ASGV